Uma cidade pode ser um sítio perigoso. Especialmente à noite, quando só se vêm recantos escuros e vultos ao longe, dá a ideia de que a cidade é um labirinto onde toda a gente está perdida, cada um à sua maneira.

Se calhar era por isso que ele acabava por deambular tanto. Perdia-se propositadamente. Caminhava devagar, com as mãos nos bolsos e a deixar-se levar pelas ideias e as ruas. Nunca se sentia inseguro.

Por vezes cruzava-se com polícia ou com os enfermeiros do inem, quando passava pelas zonas mais problemáticas. Olhava para eles e continuava, quase invisível. Se por acaso na rua via ao longe um vulto com ar menos amigável, passava por ele e dizia boa noite, sorria e proseguia. Resolvido. O truque era não parecer perdido, saber o que queria, tomar decisões antes que as tomassem por ele. Estes passeios surgiam quando precisava de pensar, quando precisava de amortecer os sentidos.

Ultimamente acontecia com mais frequência. Pegava no telemóvel, escolhia algumas músicas, seguia pelas ruas ao som de música sem letras, e de playlists sem qualquer fio condutor.

Mais à frente viu as sombras a mover-se. Não eram os vultos isolados, era um grupo. Prosseguiu, afinal de contas nunca tinha mudado a rota e hoje não ia ser a noite para começar.

Quanto mais se aproximava mais percebeu o erro que estava a cometer. Cerrou o maxilar, engoliu em seco. Aproveitou o facto de se movimentar em silêncio e a roupa escura para se começar a afastar, sem dar a entender que sequer ali estava.

Mas nestas coisas há sempre um momento chave. Um acontecimento súbito ao qual ninguém consegue ficar indiferente. Um dos vultos foge do pelotão, corre como se fugisse do inferno e é apanhado pelas sombras que o seguiram de imediato. Neste micro segundo ele viu a cara do fugitivo.

Congelou. Praguejou baixinho e respirou fundo. Uma vez, duas vezes. Os vultos mexiam-se e agitavam-se. Um, dois, três, quatro, cinco. Pegou no telefone e marcou um número, retirou os auriculares dos ouvidos e pendurou-os à volta do pescoço. Guardou o telefone no bolso do casaco, perto do peito, respirou fundo assustado e correu em direcção às sombras.

Correu o mais depressa que podia e com o mínimo de ruído, sem que dessem por isso estava a pegar no fugitivo pelos ombros e a empurrar dois dos adversários para fora do caminho.

Nova fuga. Seis vultos e uma série de gritos. Mas as pedras no caminho são traiçoeiras, o fugitivo cai, ele estanca o passo e fica em defesa. De um bolso retira um porta chaves, entrelaça-as entre os dedos sem dar nas vistas. O círculo que os adversários formam assemelha-se mais a uma arena, e só um deles fala. Dá ordens e em troca recebe um tom de voz projectado e confiante. Não ia ceder, eles eram quatro mas não o iam intimidar, riu-se e comentou como naquela rua, que toda a gente conhecia, nunca esperou confrontar-se com rufias. Recordou-os de qual era a esquadra mais próxima.

Se não fosse o pânico teria-se achado eloquente, mas sabia que agora não havia nada que pudesse evitar o confronto. Nenhum dos adversários entendia porquê. Um avançou, liderando o ataque e sendo recebido por um soco certeiro que o surpreendeu pela força com que quase se lhe furava o peito. Atirou-o ao chão, amparou dois golpes de cada lado e tentou manter-se equilibrado. Enquanto o líder se levantava do chão com ajuda os restantes não deram tréguas. Entre amparar golpes e manter-se em pé só conseguiu gritar uma ordem. Foge. E quando se inicia nova fuga,reuniu as forças que lhe sobravam para se libertar e deter os perseguidores. O resgate transformou-se numa troca, só restava amparar os golpes.

Perdeu os sentidos.

Acordou numa cama, a olhar para um tecto de luzes de halogéneo, branco, num quarto que cheirava a desinfectante. Uma voz pergunta se sabe onde está. Não sabia, suponha, resmungou. Não fez perguntas.

Respondeu a pouco ou nada. Perguntaram-lhe o que se tinha passado e só pediu para descansar. Não queria visitas.

Quando voltou a abrir os olhos estava a ser observado por um homem em cadeira de rodas. Tinham quase a mesma idade mas nada de parecidos. Observou-o com o rosto fechado. Trocaram algumas palavras sobre o que se tinha passado. Um obrigado, que tinha sido capturado novamente a caminho da esquadra mas que teria alta em breve, estava tudo bem. Deu-lhe os parabéns pela ideia de manter uma chamada para o 112 durante todo o episódio. Foi por isso que a ajuda chegou mais depressa. Não compreendia porque tinha tido a sorte de receber apoio, só teve como resposta “porque sim”.

Esta atitude fechada não lhe fazia sentido nenhum. Estava ali o homem que o tinha salvo sem razão para isso, arriscado a própria vida e ainda assim agia como se o diálogo estivesse a incomodar. Se calhar queria privacidade, pronto, que fosse. Toda a gente tem direito a ser reservada. Deixou-o sozinho. Foi um diálogo de tal modo estranho que não lhe ocorreu perguntar-lhe o nome.

Mais tarde, nas horas de visita, gerou-se alvoroço. O desconhecido, que mal se pronunciava, sorriu para um enfermeiro e fez um único pedido. Auriculares e música para abafar a confusão.

Ficava a olhar para os rostos que passavam pelos corredores e já dizia bom dia aos que entravam na sala.

Mas com um deles congelou. Parou e olhou-a nos olhos enquanto engolia em seco. Não tinha medo ou qualquer receio, foi surpreendido e não sabia como agir. Ela entrou sem esperar autorização, sentou-se em frente à cama e falou. Não imaginava nada daquilo, disse-lhe que era louco, agradeceu-lhe, perguntou porquê e teve como silêncio resposta. Não compreendia o que se passava mas repetiu o obrigada. Perguntou o que se passava e ele sorriu, afirmou que não era nada, que tinha sido só porque sim.

Já se conheciam, já se tinham conhecido há anos atrás. Ele sempre dizia que nada se faz só porque sim. Há sempre uma razão, uma intenção ou uma vontade que é dita ou mantida em segredo. Não importa, mas nunca é só porque sim. Ela sempre o viu como sendo forte, no sentido mais nobre da palavra. Não desistia, era determinado, mostrava coragem, era uma pessoa de príncipios, teimosa como poucas.

— Sabias quem ele era e o que significa para mim?

— Não, foi só coincidência.

Ele nunca mentia, mas há uma primeira vez para tudo.